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30 Janeiro 2025em Negócios
OPINIÃO | Os ativos gerados pelo crime: uma perspetiva transfronteiriça

O novo ano de 2025 iniciou-se com uma discussão há muito tempo aguardada, no que concerne à recuperação dos ativos gerados no âmbito da prática do crime de corrupção.

A Ministra da Justiça, Rita Júdice, garantiu que ainda este mês [de janeiro] seria apresentada uma proposta de "confisco" de bens obtidos por esta tipologia de crime.

Porém, é sabido que a corrupção é apenas um dos muitos crimes que geram ativos ilícitos, pelo que esta discussão também se impõe relativamente a outros crimes.

A este propósito, é também importante refletir a que custo pretendemos recuperar os ativos gerados pelo crime?

A proibição de “prisão por dividas” é indiscutivelmente um princípio decorrente da Constituição da República Portuguesa. Nenhum cidadão português pode ser privado da sua liberdade pela circunstância de dever dinheiro.

O mesmo já não acontece noutros países!

Ora, a recuperação de ativos ilícitos e a punição dos agentes que não restituam o montante derivado da prática de crimes, transcende fronteiras e exige uma resposta coordenada que pode ser dificultada por esta desconformidade legislativa.

Vários foram os instrumentos criados para superar as diferenças legislativas entre países, no entanto, a proteção da soberania nacional continua a ser um princípio basilar nas relações internacionais, o que leva os Estados a relutarem em abrir mão do controlo sobre a sua legislação penal.


## O Princípio da Dupla Incriminação

Veja-se a título exemplificativo, os regimes jurídicos do mandado de detenção europeu e da extradição (cooperação judiciária internacional em matéria penal) que preveem o controlo da dupla incriminação.

O princípio da dupla incriminação prevê que a conduta que dá origem ao pedido de detenção e entrega de um cidadão, deve ser criminalmente punível, tanto no estado requerente, quanto no estado de execução.

Este princípio visa garantir que nenhum Estado seja obrigado a cooperar em situações que conflitem com os seus valores jurídicos e sociais.

Atualmente, não existe em Portugal uma disposição legal que determine a aplicação de pena de prisão caso o agente não restitua o montante derivado da prática de crime, pelo que ficam os Estados terceiros dependentes da boa vontade dos tribunais portugueses para executar a entrega de um cidadão nestas circunstâncias (ainda que o mesmo seja nacional do Estado requerente).

Aqui chegados, já está bom de ver que esta salvaguarda pode tornar-se um obstáculo à justiça estrangeira no que toca à punição dos agentes que não procedam ao pagamento do valor correspondente aos ativos ilícitos.


## Um Caso Emblemático

No decorrer do ano de 2019, vimos o Supremo Tribunal de Justiça português tomar uma decisão que revela a pertinência deste tema.

Suscitada esta questão, o tribunal recusou-se a entregar um cidadão britânico às autoridades do Reino Unido, no âmbito de um mandado de detenção europeu.

Esse mandado visava o cumprimento de uma pena de dez anos de prisão, que resultava da ausência de pagamento de um confisco de aproximadamente 19 milhões de libras, provenientes da prática de três crimes de branqueamento de capitais, pelos quais aquele cidadão britânico já havia cumprido uma pena de quatro anos de prisão.

Não obstante, reconhecer a importância de impedir a aquisição e conservação de lucros ilícitos, o Supremo Tribunal de Justiça português decidiu não entregar o cidadão britânico tendo em conta os princípios da legalidade criminal, os de adequação, de necessidade e de proporcionalidade.


## Conclusão e Reflexão: A Lacuna legal em Portugal

Embora a exigência de dupla incriminação seja uma garantia extremamente importante para garantir a soberania e o respeito pelo sistema jurídico de cada país, é forçoso concluir que também pode consubstanciar uma barreira à justiça global.

Note-se que este requisito formal pode ser explorado como uma forma de “blindagem jurídica” ou “paraíso legal” pelos devedores que nestas circunstâncias sabem ser protegidos por legislações mais permissivas ou lacunas legais.

Podendo os mesmos, ao abrigo desta formalidade, reorganizarem a sua vida e obstarem-se ao cumprimento de uma pena de prisão.

Temos por certo que para superar estas limitações, é importante refletir acerca do futuro jurisdicional.

A solução para este dilema passa por uma maior harmonização legislativa? Estaremos a caminhar para um debate sobre a aplicação de pena de prisão quando não há restituição de vantagens obtidas ilicitamente, mesmo após o cumprimento da pena pelo crime primitivo? Assistiremos aos Estados a abrir mão do controlo sobre a sua legislação penal?

Estas são questões cruciais para um futuro sustentável do sistema jurídico europeu e para a manutenção da cooperação judiciária internacional.

Afinal, a justiça global só pode prosperar quando não seja limitada por fronteiras geográficas.

Artigo por: Tiago Melo Alves, Jéssica Gonçalves

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